sábado, 30 de janeiro de 2010

CRONICAS AMERICANAS 3

Reversões do autoritarismo

A década de 1990 para a América Latina foi um momento de fortalecimento de tendências democráticas em um período de extroversão do poderio norte-americano, agora com os poderosos contrapontos da China e da Rússia. O fim do ciclo de ditaduras de 1964 a 1985 representou mais que o fim de autoritarismos violentos, já que mostrou novas escalas de diálogo e novos espaços de identidade. Mas esse período revelou-se um teste difícil de superar, porque tornou necessário qualificar as democracias e por à prova a substância histórica do Estado nacional. Não é suficiente reconhecer o poder ascendente das grandes empresas, mas é preciso confrontá-las com o tecido de acordos, lealdades, deslealdades e individualismos que estão no miolo desses grandes interesses. O fim das ditaduras deixou à vista Estados nacionais carentes de legitimação e necessitados de instrumentos eficientes de gestão. Mas essa conclusão de ciclo também significou o esgotamento de referências de sistemas de poder arcaizados, que conjugavam uma ancoragem totêmica em preceitos do mundo rural personificado com uma complexa teia de mecanismos de subordinação trabalhados sutilmente pelas principais potências ocidentais. Desde a década de 1950 o imperialismo descobriu a cultura como recurso de dominação, mas não sabia o que fazer com ela. Criou uma antropologia subalterna, mas revelou-se incapaz de tratar as nações americanas como sociedades e relegou-as à condição de cultura e seus idiomas à categoria de dialetos. Com essa manobra estabeleceu uma distância insalvável entre as sociedades proto-européias e as indígenas.

Com a critica da cultura colocou-se um dilema de maioridade nacional que logicamente não seria dado pelas grandes empresas, senão que fluiria da relação entre a sociedade econômica e a sociedade política. Toda a luta que se livrou entre as estruturas tradicionais de poder e as representações dos setores não capitalistas foi – e tem sido – uma manifestação de novas sociedades urbanas que exprimem novas ideologias e novas competências.

Desde então, decepções que sobrevieram no plano político, como no Brasil em 1985 e na Argentina em 1984, quando voltaram ao poder políticos representantes de situações anteriores às ditaduras, na verdade instrumentalizaram um novo momento de articulação dos grandes capitais em seu duplo movimento de controle do mercado interno e de participação no mercado internacional. É revelador que no Brasil a saída da ditadura tenha sido paga com anistia a torturadores. É um pacto de poder que indica limites de ação e regras de conduta.

A América Latina entrou no novo século com um modo de concentração de capital que põe de um lado um pequeno número de grandes capitais privados, um número não muito maior de fundos públicos controlados pelo sistema político e um pequeno número de grandes empresas privadas. Este novo padrão de poder econômico tem duas graves conseqüências que são as de aumentar o poder dos governos nacionais para decidir sobre a taxa de investimento e o aumento da vulnerabilidade dos países frente a decisões econômicas que escapam ao controle dos governos nacionais.

Esta equação de poder encaminha um novo perfil político dos governos nacionais latino-americanos que se sustentam em associações de interesse com os grandes capitais e desenvolvem estratégias sociais compensatórias. Observe-se que, mesmo em situações em que são claramente redistributivas, como no caso do programa bolsa família, essas estratégias não criam novos empregos diretos e seus efeitos no mercado de trabalho são todos indiretos. Salta à vista que o essencial desse contexto é um realinhamento do sistema de poder com barreiras mais claras entre as esferas de influência dos grandes e dos pequenos interesses e dos que operam em circuitos paralelos de poder.

Estão em jogo o pacto e a forma do autoritarismo, mas não o modo autoritário de controle social. Este se exerce com mais força sobre os trabalhadores e sobre todos os que precisam trabalhar. A tendência incoercível ao desemprego tem o efeito contraditório de devolver ao Estado o papel de fiador da renda da classe média, agora mediante os mecanismos de concurso para o serviço público. O Estado retoma funções de empregador e introduz novas condições de diferenciação de renda e de garantia de emprego. Às empresas resta o papel de defensoras dos interesses do capital, protegidas pelo talento dos setores de publicidade e de marketing. Caberá examinar esses novos desvãos da modernização, assim será preciso rever o significado da qualificação educativa formal. Uma rápida revisão do que vêm sendo os movimentos locais de reivindicação econômica, em diversas partes do Brasil, revela uma enorme distância entre aquela modernização conduzida pelos aparelhos do grande capital e as iniciativas de comunidades e governos locais. Uma nova visão teórica sintética desse processo espera, desde a Revolução burguesa de Florestan Fernandes.

A questão central parece estar no laço entre movimentos externamente conduzidos e movimento internamente apresentados, que qualifica relações de classe e dá novas luzes aos aspectos étnicos e éticos. A critica histórica do autoritarismo se faz como uma manifestação histórica de consciência social.

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