terça-feira, 19 de janeiro de 2010

CRONICAS AMERICANAS 2

Os fundamentos irracionais da autoridade

O autoritarismo é um modo de ser da atividade política que se realiza nos âmbitos em que ela acontece, desde o ambiente familiar ao comunitário e ao da política organizada nos planos local, regional e nacional. O autoritarismo é uma manifestação irracional de autoridade, que tem sido atribuído ao componente tradicional dos sistemas de poder, por isso mesmo, separado das práticas de modernidade. No entanto, diante do recrudescimento das estratégias de poder conduzidas a partir de uma lógica de interesses identificada com a perspectiva de empresas
[1], torna-se necessário rever os fundamentos históricos do autoritarismo. Não será um atributo do que é tradicional senão uma estratégia de poder que usa a referência a tradição, do mesmo modo como usaria qualquer outro recurso a controle social. O autoritarismo usa tradições apenas no que elas reforçam a relação entre autoridade e obediência, mas não cita tradições de trabalho cooperativo nem tradições de insurreição. Em síntese, o modo de autoritarismo precisa ser colocado em situações e em processos específicos, tal como ele é chamado a sustentar processos de poder.

Essa relação entre o autoritarismo e a base familiar da sociedade exige uma reflexão mais cuidadosa acerca das transformações da esfera familiar na América. Os Estados Unidos tiveram modificações precoces determinadas pelo esforço bélico na Primeira e na Segunda Guerra Mundial. Os conflitos políticos e as migrações foram os principais detonantes de transformações na família dos grupos médios e superiores de renda, enquanto a luta pela sobrevivência modificava decisivamente a família nos grupos de baixa renda. Relações baseadas em cooperação e em concorrência foram instigadas pelas condições diferenciadas de participação no mercado de trabalho. Novas relações de poder se formaram desde as relações familiares, que se projetaram nas empresas, nos partidos políticos e na máquina governamental.


A importância que cabe atribuir ao autoritarismo hoje se deve a dois dados específicos da vida política na América Latina que são a atualização do bloco histórico de poder e o recrudescimento de práticas de controle maciço da população que podem ser entendidos como modos de autoritarismo indireto. Na América em geral há um problema com autoridade e com autoritarismo que acabou sendo trabalhado de modo explicito no mundo latino-americano e ocultado no mundo norte-americano. As estratégias do poder norte-americano partem de uma situação aparentemente inquestionável de supremacia para definir defesa, segurança etc. Passam por alto os limites externos desse sistema de poder e olham para as linhas internas de tensão apenas como variáveis desse jogo de poder. Há um autoritarismo direto, que se estende das ditaduras aos aparelhos de poder sutis e outro autoritarismo indireto, que usa o anterior e se realiza mediante o controle da formação de capital. À simplificação de dizer que a América Latina tem estado travada por problemas com autoritarismo cabe indicar a necessidade de um olhar introspectivo e cuidadoso sobre o tema da autoridade, com suas raízes, seus desvios, e, principalmente, a carga de reivindicações que este tema engloba.

As nações americanas surgiram de confrontos com versões de autoritarismo europeu, em confrontos que tiveram diferentes efeitos na grande propriedade rural. Nos Estados Unidos a disputa por sistemas de grande propriedade foi transferida à expansão de fronteiras enquanto na América Latina a grande propriedade foi assumida como fundamento das novas estruturas nacionais. A construção de sistemas autoritários abasteceu-se de tradições herdadas do feudalismo e de sistemas tribais americanos, como caciquismo e caudilhismo, que representavam o mando de base familiar, mas não de propriedade de terras. O prestigio pessoal do cacique, que jamais foi hereditário, foi reforçado por mecanismos locais de poder, favorecidos pela fragilidade dos Estados nacionais. O principio de autoridade identificado com a propriedade da terra foi incorporado ao sistema produtivo com o peso reconhecido aos proprietários na constituição do poder político formalizado.

A primeira observação que aparece como essencial nesta reflexão é denunciar a manobra sutil que consistiu nessa apropriação de valores indígenas de diversas nações e contextos, justamente, pelos sistemas que se formaram mediante a dominação dos índios. Guerra e extermínio sistemático de indígenas marcaram a formação dos EUA, da Argentina, do Brasil. Junto com a desqualificação dos indígenas vem a dos mestiços e a criação de fantasmagorias de uma América européia. O autoritarismo deriva do controle de terra e água, que estão associados ao controle de pessoas e se atualiza, incorporando referências do próprio modo de modernização. Uma segunda observação refere-se a como o controle das pessoas, isto é, da força de trabalho atual e da potencial, se torna o eixo do sistema, regulando a capacidade de controlar o uso da terra e as oportunidades de renda nas cidades. A chave desse processo é o controle da qualificação dos trabalhadores que se torna uma mercadoria e que está direcionada para atender uma demanda atual.

A formação e a consolidação de sistemas de autoritarismo fizeram-se por meio do controle do Estado e em sucessivos movimentos que transcenderam o poder militar local – milícias e bandos armados – ao de forças armadas nacionais. A autoridade não dependeu de eficiência econômica senão de controle de patrimônio. A incorporação desses sistemas nacionais ao mercado se fez mediante a articulação da produção rural por interesses internacionais, quase sempre britânicos. Coincide com a Segunda Revolução Industrial e aparece na Argentina, na incorporação dos Pampas ao circuito de exportação e no México à renovação da grande propriedade produtora de mercadorias pelo Porfiriato. No Chile com a exportação de guano e com a transformação do Chile em economia mineiro exportadora, tal como a seguir aconteceu com o Peru, com a Bolívia e com o México.

A expansão do capital que aconteceu entre 1870 e 1914 substituiu os mecanismos locais por mecanismos nacionais de poder, subordinando as formas mais antigas, preservando modos de autoridade familiar com a ajuda de aparelhos ideológicos que opera à margem do sistema mas que são essenciais a ele, tais como as igrejas e o sistema educativo. A consolidação de Estados nação foi um processo violento conduzido por núcleos regionais de poder, tal como aconteceu no Chile, na Argentina e no Brasil. Comparado com a força do federalismo na Argentina o centralismo chileno seria um exemplo de concentração de poder que se identificaria com um nacionalismo conservador.

O fim da Segunda Guerra Mundial trouxe o desmoronamento desse sistema patrimonial pré-industrial e sua substituição por posições periféricas de atrelamento ao mundo industrial. Nesse novo contexto definiram-se papéis a serem desempenhados pelos líderes da industrialização, especialmente pelos EUA, papéis para os secundários do centro, como os Países Baixos, o nórdicos e papéis diferentes para países periféricos com variada capacidade de crescer. Em resumo, a chamada relação entre centro e periferia, tal como trabalhada por Prebisch, encobre posições e funções incomparáveis de países e de grupos. A relação concreta entre o campo do centro da acumulação mundial e o da periferia passa pelas vicissitudes da organização social da produção, em nações com mais recursos de solo e água como a Argentina ou em nações com limitações físicas como o Peru.

O desenvolvimento de sistemas exportadores externamente controlados foi a base de um colonialismo hoje difícil de entender, mas que foi a grande explicação da prosperidade desde a Inglaterra até a Bélgica e que só pôde se manter com o concurso desse autoritarismo irracional que manteve numerosas populações a serviço dessa lógica de extração de valor. A questão, portanto, se remete aos mecanismos do poder externamente controlado que desenvolve procedimentos internos de legitimidade. O tema da legitimidade, como advertiu Habermas torna-se essencial para a sociedade do capital em seu conjunto
[2]. A ascensão norte-americana se sustentou com a criação de novos aparelhos de poder, principalmente mediante indução e controle de consumo, de itens como coca cola e cinema, mas não removeu os aparelhos do sistema anterior, em que empresas européias encontraram como armar estratégias de participação nos mercados americanos. A própria sociedade norte-americana torna-se uma referência crítica

Sob essa pressão externa constante o autoritarismo torna-se uma estratégia defensiva, de proteção dos blocos de poder que procuram sobreviver com seus privilégios. O bloco de poder se reorganiza para defender a taxa de lucro que conseguiu mediante a coerção do mercado de trabalho, tal como foi feito no Chile posterior a Allende. O regime político instalado pela ditadura no Chile em 1973 foi um experimento mundial de autoritarismo e de desqualificação da representação dos interesses dos trabalhadores, cujo antecedente foi o franquismo, com a diferença que operava no contrapé do declínio da Guerra Fria, respondendo a um projeto imperialista do fim do século XIX, de inspiração imperial Germânia. Descrevem-se, assim, elementos de uma irracionalidade mais profunda e anterior ao próprio nazismo, que encontraria seu correspondente no autoritarismo argentino igualmente pró-nazi.

Surge desses socavões de irracionalidade pré-capitalista uma nova agressividade que mobiliza valores ditos tradicionais que são a representação dos interesses do sistema de poder emanado da grande propriedade. O novo sistema de poder se mobiliza para sustentar uma expansão de capitalismo periférico com fragilidades estruturais que são, precisamente, a falta de mercado próprio e a falta de energéticos, como é o caso do Chile. O poder se transveste de moderno, de empresarial. Recorre aos fundamentos irracionais do autoritarismo ibérico quando combina ingredientes religiosos e racismo, agora encontrando aliados inesperados nas facções mais reacionárias do protestantismo.

Descobre-se a principal contradição entre a reprodução do sistema irracional do autoritarismo e os mecanismos racionais de operacionalização do capital. No essencial é o uso racional da irracionalidade, que é a marca do autoritarismo industrial. Há um uso tecnificado do sistema político para corromper e eficiência econômica dos empreendimentos. Racionalidade na gestão do capital e do emprego e irracionalidade no nepotismo na esfera do capital privado. Finalmente, irracionalidade de desempregar força de trabalho quando o capital precisa de mais demanda interna para se reproduzir. Não é por acaso que o Brasil pôde ampliar a demanda interna mediante medidas populares – por discutíveis que sejam – enquanto outros países não tiveram essa margem de manobra. O desastre do capital na esfera mundial foi detido pela emergência de novos grandes mercados na Ásia, mas a tendência geral continua apontando a um bloqueio do mercado associado à queda do emprego.

Sob a pressão da crise mundial destapada em 2008, a polêmica em torno do autoritarismo se instala de novo, agora com uma combinação de referências internacionais e nacionais. Surgem “teóricos”periféricos do poder central
[3], revelando uma diluição das elites com os compromissos nacionais e uma nova atitude das grandes potências no uso de mercenários de todos os tipos, desde soldados a intelectuais.


[1] No discurso crítico sobre a América será inevitável, adiante, questionar a racionalidade das empresas como representantes dos interesses privados.
[2] Jurgen Habermas, Legitimidad del capitalism tardio, Buenos Aires, Amorrortu, 1972.
[3] Personagens tais como Parag Khanna ( O segundo mundo, 2008) ou certos “especialistas” brasileiros que trabalham para os planos de defesa norte-americanos exemplificam essa desnacionalização.

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