quinta-feira, 3 de julho de 2008

OPINIÃO

A FAVOR DA CIVILIZAÇÃO
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É cansativo e desagradável escrever sempre contra alguma coisa. É agradável estar a favor de alguma causa. Hoje não há muitas disponíveis e a tentação de contestar é quase inevitável. Mas é bom voltar a valores básicos como os que representam a tão maltratada civilização ocidental. Para isso, vamos recuperar o que há de luminoso e livre da herança grega inicial, quando as pessoas representavam referências de indagações sobre os princípios da vida social, quando ela ainda não estava esmagada pelos artifícios do discurso do Estado. Muitos discorrem sobre as transformações do Estado sem atentar à imensa capacidade de sobrevivência das pessoas frente ao Estado, capturado por uma variedade de populismos, pré-industriais, industriais e pós-industriais. Uma das mágicas mais assombrosas do século XX foi a consagração de partidos populares que copiaram mal as práticas de engano e dissimulação que antes tinham caracterizado o absolutismo. A esquerda na sociedade industrial tinha sido a representação de coletivos emancipadores. Por isso, não pôde ser apropriada impunemente. Deixaram de estar a favor da civilização. Por isso, o populismo tardio se esgota em sua incapacidade de iludir. Como dizia o poeta Emilio Moura: invento poemas a ver se me iludo/ a mágica falha/ do fundo da noite virá quem me valha?
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Salvador, 28 de Julho de 2008
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UMA LUCRATIVA LEI SECA

Gostaria de não voltar a me pronunciar sobre essa lei desprovida de inteligência, mas é revoltante a manipulação que a imprensa faz deste tema. Não se pode esquecer como a lei seca nos EEUU foi lucrativa para gangsters e políticos associados. Fortunas ilustres como a dos Kennedy, de Luciano e de Al Capone surgiram com ela, que deu passagem a um sistema profundamente corrupto. A noção de uma proibição radical sempre foi simpática aos setores religiosos mais conservadores, que deram o subsídio ideológico a políticos que combinam esse puritanismo simplista com o privilégio de usar uma política repressiva como controle ideológico da sociedade. A grande imprensa entra alegremente nesse jogo, que lhe permite fazer pesquisas onde só registram opiniões favoráveis ao discurso do poder. Afinal de contas, como se dizia no tempo da ditadura, a democracia sempre fica arranhada para que haja progresso. Neste caso, fere-se a democracia, espezinham-se os direitos individuais, mas não há progresso. Simplesmente, o jogo autoritário simpático aos resultados imediatistas. A lei do terror no trânsito desobriga a educação no trânsito. Não se fazem as contas de como essa lei dos santarrões atinge a economia nem como estimula a corrupção. Fala-se apenas de seus resultados positivos. Não se pergunta por que não se aplicava a lei que já existia. Não se imagina que a cidadania vai ter que se colocar contra.
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Salvador, 21 de julho de 2008
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A CULTURA DA CORRUPÇÃO

O pior efeito da corrupção é que ela desmoraliza qualquer projeto ideológico de progresso social. De um lado, o bom senso na penalização dos corruptos está ligado à sobrevivência do Estado nacional. De outro lado, a infiltração do poder corrompido é parte da reprodução do sistema político. Assim, o combate à corrupção surge como uma contradição do sistema de poder, mas tem a seu favor esta busca de sobrevivência do sistema, que opõe os direitos individuais dos corruptores à necessidade do Estado. Mas o combate à corrupção revela uma contradição da acumulação capitalista, onde a luta pelo controle das oportunidades de acumular põe os interesses individuais à frente dos coletivos. Não pode, portanto, ficar delimitado por situações individuais.

O Brasil enfrenta hoje um problema metastático de corrupção, que está no caminho do desmontamento do sistema das drogas e da violência organizada. A luta contra a corrupção levanta um problema estratégico, antes que um problema ético. Quanto o Estado brasileiro está disposto ao controle da economia nacional por um pequeno número de empresas. A velha noção de empresas foi substituída pela de grupos econômicos que utilizam centenas de empresas e criam regras próprias no sistema de poder. Será preciso entender o sistema de poder econômico com suas irradiações políticas, para estabelecer limites ao controle privado da sociedade econômica. Não é, portanto, uma tarefa que se limite a enfrentar alguns corruptos de maior porte. A corrupção é um sistema enraizado em vantagens ancoradas em privilégios e no controle da máquina pública. O moralismo imediato resulta em reajuste do sistema político de poder.

Salvador, 12 de julho de 2008
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ESTADO CIVIL AUTORITÁRIO

O uso de instrumentos de exceção é a marca mais evidente do autoritarismo legitimado que prospera na passividade da sociedade civil. Com mais folga, ainda, quando se manifesta em temas que dividem a sociedade, ou que dão argumentos aos seus segmentos mais repressores. No Brasil o autoritarismo civil tem a seu favor a tradição de que esta é uma sociedade que se realiza na repressão. Repressão nas relações de classe, infiltradas do velho patriarcalismo e nas manifestações ideológicas, que são destituídas de seu caráter polêmico. Progresso pode ser bom para alguns, mas ordem é boa para a maioria. As coisas se complicam quando as iniciativas de repressão entram em contradição com os fundamentos jurídicos do sistema de poder. Há uma Constituição que se modifica periodicamente, mas que ocupa esse lugar central. Ninguém pode ser contra reduzir acidentes de trânsito. Mas o pior da nova lei de trânsito é que ela presume culpa antecipada e pela recusa de alguém em oferecer prova contra si próprio. São duas contradições com a referida lei principal, que configuram o autoritarismo civil do Estado e clamam por educação política dos mandatários. É a velha história: o Estado não é propriedade de quem se encontra no governo.

Salvador, 5 de Julho de 2008
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A PARANOIA DO BAFÔMETRO

Desencadeia-se novo furor santarrão no país. Sob as barbas do profeta do populismo tardio, a grande comunidade dos beberrões protegidos investe contra o cidadão comum que tem na cerveja de má qualidade sua companheira de desabafo. Livre fica a grande maioria dos bebedores de cachaça que não tem esperança de carro próprio. Os que caíram na esparrela de se deixarem seduzir pela compra de carros pseudo-populares, que já vêm sendo assediados em todas as esquinas, agora terão que aturar os novos em-baixa-dores do sistema de transportes. Em nosso novo pesadelo, pensamos se estamos numa sociedade mal-metana ou des-crente. Com a inevitável desconfiança dos índios que assistiram à primeira missa, primeiro nos perguntamos quem ganhará com esse ataque hoolywoodesco de virtude, depois, pensamos como este país está ficando chato, como esse pessoal do trânsito é chato, como estamos expostos a tanta chatice consagrada. Como ficará tudo isso, quando os choferes de taxi resolverem beber e quando, finalmente, o pessoal do trânsito, num ataque de consciência, reconhecer sua inutilidade e se reunirem todos num grande bar para comemorar o fim do furor sagrado do bafômetro.

Salvador, 3 de Julho de 2008