segunda-feira, 14 de junho de 2010

CRÔNICAS AMERICANAS 5

Um balcão sobre a barbárie II

A barbárie é um tema recorrente entre nós, é um enigma da América, onde ela aparece como um contrário da brutalidade oficial da civilização européia, ou como uma afirmação de valores tribais americanos. Toda vez que tocamos nesse tema fica a sensação que devemos uma referência honrosa a Cornelios Castoriades, mas não se pode esquecer que a leitura crítica foi posta na mesa por Marx. Não somos bárbaros por não sabermos falar grego, mas por darmos espaço a modos instintivos de ser e de fazer política. Os massacres cometidos pelos europeus e pelos governos americanos arvorados em herdeiros da Europa, tanto norte-americanos como sul-americanos – jamais foram cognominados de bárbaros, Fora ficam o massacre dos yaquis no noroeste do México e dos araucanos no sul do Chile e da Argentina e inúmeros outros eventos de enfrentamento da civilização com os bárbaros. Os massacres cometidos pelos governos autoritários sobre as classes médias urbanas e os trabalhadores rurais nas recentes décadas passadas foram manifestações de barbárie introvertida, porque a maioria dos torturadores era parte desses mesmos grupos sociais. A violência represada e aproveitada pelos grupos de poder acuados está no centro do problema. A polêmica acerca da barbárie está no fundamento da versão americana de civilização, sobre a qual se debruça o conflito entre a renovação do colonialismo e as manifestações de identidade. Um tecido esgarçado mas que se afirma como portador de autonomia e de personalidade cobre os movimentos sociais e os do povoamento. No diálogo latino-americano sobre o binômio civilização e barbárie certamente estão alguns pensadores que delimitaram o campo operatório da análise. Destacam-se Leopoldo Zea e Darcy Ribeiro, com diferentes tratamentos do objeto histórico, diferente corte ideológico, mas que não ligaram o fluxo do pensamento ao da história, tal como fizeram outros, menos abrangentes porém mais reveladores, como Picón Salas e José Luis Romero. Os bárbaros estão livres para serem sinceros e emocionais. Os civilizados são contidos, reprimidos e insuportavelmente racionais. Os bárbaros se dispõem a triunfar ou morrer por ideais, que são artefatos incômodos para os civilizados, que decretaram o fim das ideologias. Na América descobre-se que há várias Américas, várias delas indesejáveis, outras que nos invadem pelos ralos do fanatismo conduzido.

O manuseio da barbárie como categoria diferenciadora da cultura latino-americana, tal como fez Halperin Donghi, fomenta um estilo americano de leitura da história que levanta criticamente suas ascendências burguesas. Nesta leitura o racionalismo aparece como um maneirismo europeu do Iluminismo, assim como o positivismo é um produto importado da França, tanto como o pragmatismo é um cacoete norte-americano. Em economia o positivismo marcou um retrocesso na criatividade da teoria, que ficou nas mãos estéreis dos neoclássicos. Uma visão americana da história não pode ficar presa ao norte-americanismo de Braudel, nem à surpreendente admiração de Gramsci pela América (do norte), mas deve procurar os fios condutores entre a América das civilizações anteriores e a das atuais. A barbárie não é nenhuma virtude, mas simplesmente descreve a irracionalidade do colonialismo. Tratar com ela é um modo de fazer história interna da América Latina.

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